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Tavares

  • Foto do escritor: Sandra Tavares
    Sandra Tavares
  • 13 de mai. de 2024
  • 8 min de leitura

Atualizado: 16 de mai. de 2024

O primeiro homem de uma menina é o seu pai. Todos os homens que entrarão em sua vida depois serão criteriosamente internalizados como pessoas e seres humanos de convívio, afeto, admiração e respeito a partir desta referência masculina primeira. Com o meu aprendi muito. Desde muito cedo. As memórias permanecem de momentos singelos, juntos balançando numa rede, eu cabia no colo dele e esta memória me remonta da sensação de segurança ao estar ali com ele.

Lembro de como aprendi as horas em relógios de ponteiro. Ele pacientemente, em um fim de dia, eu sentada em minha cama para dormir, se ajoelhou, e explicou que o ponteiro menor media as horas, e o maior os minutos. Um homem bem a frente de seu tempo, pois gostava de estudar astrologia, exoterismo, elementais.

Com ele eu batia papos bem francos na adolescência e dúvidas sobre sexo e tudo o mais. O que voçê troxesse de questionamento, lá estava ele pronto para um bom bate-papo. A prosa rendia. Lembro de perguntar: quando posso começar a namorar? O que ele respondeu: "Com 15 anos." Lembro dele ralhando comigo e me mandando lavar o rosto depois de usar maquiagens de minha mãe. "Vai lavar esse rosto agora!".

Acho que ele queria mexer nos ponteiros do relógio, os mesmos em que ele me ensinou as horas, e que faz o tempo passar. Ele queria esticar a nossa infância e adolescência. Pois sabia que depois dali só viria a vida adulta com toda a sua complexidade e também toda a sua beleza.

Eu tinha por ele uma verdadeira veneração. Ele chegava em casa e eu achava que o sol tinha adentrado nossa casa. Uma alegria. Um contentamento de menina. Ainda tenho essa sensação quentinha aqui dentro do meu peito. Ele era um torneiro mecânico de profissão, nós três pequeninos em Araxá-MG. Ele sempre vinha da Fosfertil com um copinho de plástico coberto com um guardanapo, cheinho de pudim, que a gente comia feliz da conta não apenas pelo doce, mas muito mais por ele ter voltado pra casa, e por ter lembrado da gente durante a sua jornada de trabalho.

A partir do momento que eu percebi que ele não estava muito bem, eu dei uma emburacada. Busquei ajudas como que intuitivamente dizendo a mim mesma: 'algo não anda bem, o que pode acontecer?' Essa antevisão me fez, além de cuidar de mim, levá-lo a exames, e tive que ser áspera, dura, pois ele era avesso a médicos, a sair de casa, a interagir. O refúgio dele estava nos filhos e netos. Depois da separação de nossa mãe, de tentar refazer sua vida com uma outra esposa e não ter dado certo, ele ficou de mãos dadas com a tristeza. Foi difícil pra nós vermos que poderia ter sido diferente. E não foi. Ver a nossa mãe ir antes dele foi outro golpe. Acho que ele torcia por ir primeiro. Mas Deus como sempre prega peças, e nos levou mamãe para que pudéssemos aprender a amá-lo só um pouco mais. Amá-lo dentro de toda a nossa imperfeição. Amá-lo de peito mais aberto. Sem esperar nada em troca a não ser aquele sorriso quando ele via os netos num simples almoço de domingo.

E de quando as coisas realmente não ficaram nada bem, até sua passagem para o lado de lá da vida, foram apenas 8 dias. O símbolo do infinito de pé. De 20 a 28 de abril. Apenas 8 dias. Consegui nesses 8 dias pedir perdão por qualquer coisa, comprender que a gente aqui tá de passagem mesmo, e que guardados os nossos erros ou defeitos, o que fica mesmo e o que marca a vida das pessoas, é no que conseguimos tocá-las de alguma forma.

E ele era sizudo, calado, sério. Gabriel me perguntou mais de uma vez: 'Mãe porque o vovê não sorri? Por que ele é sério?" De fato ele sorria pouco, mas quando sorria enchia o meu coração. Era bom de papo e de conversa quando mais novo. Depois de torneiro mecânico, sua segunda profissão foi chaveiro. Mais simbólico impossível. Abria os cofres, portas, conhecia os segredos. Conhecia engrenagens de fechadura como ninguém...sabia que a porta tinha jeito ou não, só batendo o olho nela. Esse homem abriu muitas portas. Criou os 3 filhos com essa profissão.

E quando atendia como um chaveiro em um ponto comercial, era fã de um bom debate sobre Deus e religiões. Se aparecesse um 'crente' no balcão pra fazer chave que falasse de Deus pra ele, ah rendia...a conversa. E o crente saía dali danado da vida com a visão holística dele de que Deus está na natureza, que existem elementais. E que nossos pensamentos produzem esses tais elementais, pro nosso bem ou pro nosso mal. Era um filósofo. Um bom contador de histórias.

No alto de seu ponto comercial, bem no meio na parede tinha uma imagem que até hoje não sai da minha memória. Quando eu perguntava quem era o homem no quadro ele falava: "O nome dele é Kuthumi. É um mestre da Grande Fraternidade Branca." Eu não fazia ideia do que ele estava falando. Mas achava tudo aquilo muito curioso, misterioso e interessante. Nessa época não tinha um celular na mão para pesquisar sobre o tal Kuthumi.

Como um homem tão simples, que parou na 8a série do fundamental, e que teve uma infância tão difícil, buscava as coisas sutis e do alto tão facilmente?

Este menino nasceu na cidadezinha de Picos, no Piauí, foi o 3o filho homem de 11 filhos de José Tavares Pessoa e Teresinha Alves de Carvalho. Meu vô uma misuta de cabloco e índio. Minha avó uma branquinha de olhos claros.

Os resguardos de todos os partos de minha avó - depois que meu pai nasceu e tomou corpo - quem tirava era ele e os outros irmãos mais velhos, levando lata d´água na cabeça pra dentro de casa, acendendo o fogão a lenha, cuidando da casa. Tanto que quando casou com mamãe gostava de se gabar pra gente que ele fazia tudo dentro de casa e que mamãe foi criada para estudar e não sabia 'fritar um ovo'. A vida de casada pra minha mãe foi difícil. Já papai conhecia de 'frente pra trás e de trás pra frente' o riscado de como cuidar de uma família.

Durante todo o tempo em que meu pai estava na UTI, quando dava eu só ouvia músicas coreanas, de séries 'água com açucar' que eu havia assistido muito tempo atrás. Precisava ouvir músicas em uma língua completamente desconhecida, como que para o cérebro ser conduzido para uma outra realidade. O que o processo dos últimos dias de meu pai tem a ver com músicas coreanas, eu não sei. Mas precisava dessa total não-correlação para poder sustentar o que estava acontecendo, entre caminhadas para chorar muito e conversar com Deus e idas de carro ao hospital num rodízio louco com meu irmão e irmã.

Não foi fácil para nenhum de nós três. Mas ao mesmo tempo há um legado forte na pessoa e no nome dele, TAVARES. Esse sobrenome que faz com que sejamos conhecidos nesse mundo. Meus meninos na escola são 'Tavares'. A força do sobrenome dele me fez ir atrás de um pouco dessa história.

Sobrenome toponímico ibérico. Em Portugal, tem origem na terra de Tavares, próximo a Viseu, na antiga região da Beira Alta. Na Espanha, a origem é na localidade de Tabares, surgindo daí as formas Tabarés ou Tavarez. Para alguns, o vocábulo viria de Talavus, primitivo nome comum pré-romano dado a uma planta ou animal.

Seu nome na origem tinha relação com a natureza que ele tanto amava estudar. Na infância nada fácil, ele não teve acesso a estudo. Parou na 8a série e mesmo assim foi um guerreiro ao garantir que os 3 filhos chegassem ao nível superior, e até mesmo a um doutorado, de meu irmão. As frases dele ecoam até hoje em minha memória: 'Para pobre minha filha só tem um caminho: estudar, estudar e estudar." Era o mantra dele para nós 3, seus filhos. E dávamos o nosso melhor os 3, tanto que entramos em escolas técnicas, universidades públicas, em carreiras públicas nutridos por esse empenho e dedicação dele abrindo cofres, portas de carros e residências.

Ele tinha um orgulho danado de falar que formou 3 filhos fazendo chave. Mal sabia ele que o orgulho era nosso de passar no chaveiro, indo pra escola, e deixar a marmita dele. Meu presente de 15 anos não podia ser festa, mas foi um relógio folheado a ouro, escolhido por ele a dedo na relojoalheira do bairro. Ele era um homem de rituais, detalhista. Leitor e estudioso.

A perda de minha mãe teve um peso, um significado, um gosto amargo. A perda dele foi diferente. Não foi do tipo 'dor menor do que a outra dor', não é isso. Foi passar pela experiência de novo. Foi atravessar o portal da impotência pela 2a vez. Foi se sentir pequena já tendo se sentido assim uma primeira vez. Eu sinto a falta da voz, da bença, do cheiro que ele dava no cabelo dos meninos. E de como ele ralhava dizendo que eu era mole e precisava ser mais dura com os filhos.

Ele foi um pai duro. Não havia brecha, folga. Ele era rígido. A doçura era de minha mãe. A doçura dele, às vezes, atravessava a fresta de seu existir, entre uma rigidez e outra.

Ele tinha uma certa instabilidade. Um humor que variava. Ora alegre e otimista, ora nostálgico e pessimista. Sentia como que um banzo (dos africanos) pela sua terra natal. Se afastou dos irmãos, irmãs.

Da esq. para dir. tio Luís, papai, tio Antônio e tio Francisco.


Lembro de pequena ele dar telefonemas e falar com os pais ainda vivos. Mas depois todo aquele ritual foi se perdendo no tempo. Ele se ressentia que não éramos apegados à tios, tias, primos. Mas a vida é feita de escolhas, e ele ao sair do Piauí para o Sudeste (1o MG depois ES) em busca de melhores condições para os filhos, não conseguiu manter os vínculos com maior frequência. Não há que se falar em culpa ou culpados. Prefiro acreditar que o desapego foi outro ensinamento dele. Que teve um custo talvez alto: o da saudade dos seus.

As séreis coreanas acabaram. E pretendo parar de assiti-las. Porque são longas e porque são bem melodramáticas. São a novelinha pra esquecer da rotina. A lingua continua me fascinando. Ouço as músicas e não sei o que os músicos estão falando. Mas há beleza. Há harmonia entre vozes e instrumentos.


Meu pai com uns 10/12 anos; ele com meu irmão no colo; e eu, meu pai e meu irmão.


Assim como não sei o que falam nas músicas, não sei para onde ele foi. Do outro lado da vida. Mas sei o que fica. Assim como fica a sensação gostosa de uma melodia que não entendo a letra mas me deixa leve, assim deve ser o lugar para onde vão aqueles que plantam boas sementes. A árvore de meu pai é frondosa e bem recheada de frutos. E assim como uma melodia se faz com vozes e instrumentos, uma vida se constrói com elementos primordiais: amor e humanidade.

E ele foi humano e foi amoroso.


Para aquele que me ensinou as horas.

Hoje vejo o tempo escorrer entre os dedos.

À espera de um dia te pedir a bença de novo.


Capas de discos com trilha sonora de séries coreanas exibidas na Netflix: Tudo bem não ser normal; Chocolate; Pousando no amor; Something in the rain; Saimdang e Amor e casamento.




 
 
 

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