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Inteireza

Foto do escritor: Sandra TavaresSandra Tavares

Atualizado: 7 de abr. de 2021


Passei bons tempos de minha vida - mais precisamente de 2008 para cá - em um mergulho interno chamado terapia. Entre idas e vindas, foram 13 anos na companhia de duas profissionais magnânimas. Uma em Brasília, minha querida Jane, e outra em Vitória, minha querida Marieta. Ambas me ajudaram a abrir as gavetinhas do meu ser...e ir, sem medo, desnudando o que ali estava. Sem pressa, no amor e com muita compaixão por mim mesma. E foi um processo lindo! No Espaço Tempo para Você, de Marieta, cumpri a Jornada da Heroína. Foram 8 temas e Contos que me ajudaram a ver em mim muito mais do que os próprios Contos revelam, cada um com sua riqueza própria. E a tarefa final chegou...com aquele misto de saudade. O desafio: escrever o conto da minha vida. Uau...que responsa. Afinal numa escrevi um conto. Este é o meu primeiro. Espero que gostem de ler.


Inteireza

Havia na savana africana uma história de uma família de leões. Os pais se conheceram na caça do bando. Cada um bem diferente do outro. Enquanto o leão pai queria matar uma caça por dia e deitar-se na relva para o descanso do rei, a leoa mãe sonhava outros sonhos. Quem sabe de ser um rouxinol ou outro dos animais vistos do mais longínquo horizonte voando livre, e cantando feliz? Bem foi assim que eu cheguei. Numa ninhada de três filhotes, nasceu Fight meu irmão mais velho, eu a leoa do meio e minha irmã caçula Sweet.


Andávamos em bando mas meu pai em um momento resolveu caçar gazelas e outros bichos em outro território. Meus avós leões não interferiram e lá fomos nós viver em outras terras, lutando a cada dia pela sobrevivência afastados do bando maior. Minha mãe Hope, sempre

sonhadora, sempre cantante e sempre vendo-se no bando não como uma leoa, mas como algo além, como um rouxinol. Eu, juntamente com meus irmãos, cada qual do seu jeito, acordava cedo e tratava de fazer o dia render. Eram emboscadas, artimanhas para que a presa pega pelo meu pai virasse um prato cheio de felicidade naquele dia.



Mas o tempo foi passando e nós de leões jovens nos tornamos belos candidatos ao acasalamento. Sim, havia outros leões no mesmo território. Minha mãe sempre saudosa sentindo a falta dos seus pais, meus avós, que haviam ficado na nossa terra de origem. Eu tinha memórias doces das lambidas de minha vó no entardecer dos horizontes. Mas eis que naquela terra estranha ainda, de bichos que caçavam bichos para viver, encontrei um rapaz leão, caminhando pelas bandas que meu pai tomava conta, a ferrenhas unhas.

“O que faz aqui?” – perguntei a ele. “Não sabes que por essas bandas fica meu pai Sad, e que todos os animais que por aqui andam viram nosso alimento?” – continuei, mostrando a coragem que não tinha de uma leoa já ensaiando a proteção de futuras crias.

“A tempos venho olhando vc. Lá daquele cume. Você é uma leoa garbosa. Não queres formar uma família comigo?” Que ousadia daquele rapaz. Como eu deixaria meu bando para acompanhá-lo. Meu pai e minha mãe precisavam de mim, afinal quem mais poderia ajudar a aquecer um ao outro nas noites um pouco frias daquele lugar?


Mas o leão, jovem e viril...com juba estupendamente bagunçada pelo tempo e pelas caças, insistiu. “Tudo bem. Entendi. Terei que ver com teu pai, e me inserir no bando. Mas não sei se tu sabes, mas sou um leão de terras bem distantes...na Índia. Vim parar por aqui porque fomos caçados, capturados e jogados depois por essas áreas africanas. Minha terra tu precisas conhecer. É divina. Vem comigo?”

“Sinto muito mas tenho muito o que cuidar por aqui. Corteje outra” – respondi firme, porém de coração aquecido pelo olhar daquele leão jovem e atrevido. O tempo foi passando e ela não tirava da memória as poucas palavras trocadas com o desconhecido. A caça e afazeres do bando continuavam dia a dia. Hope, sua mãe, ora mais presente, cuidando de seus jovens filhos. Ora mais aérea, e cantante, pensando ser um rouxinol.


Até que um dia, numa emboscada a um cervo, Sad seu pai abateu a caça mas ao mesmo tempo e um pouco antes que o jovem rapaz leão, com quem ela havia trocado poucas palavras, pois ele tbm havia corrido atrás da mesma presa. Os dois leões em grunhidos e urros, brigavam para saber quem ficaria com a comida do dia. Percebi que meu pai estava sendo turrão, teimoso e até insistente em manter-se o rei diante do fato consumado. O jovem leão, no entanto, continuou sua tese de que a caça era dele. Intervi, achando toda aquela situação desnecessária. “Pai, eu vi. Ele chegou primeiro na jugular do cervo. Vamos? Caçaremos em outro pedaço de área.” – falei tranquila. “De jeito algum. A carne é nossa e não abro mão”.

Foi quando o jovem leão se apresentou a meu pai. “Sou Sky. Posso caçar em outro canto sem problema. Mesmo sabendo que quem matou o cervo foram meus dentes. Mas quero pedir para poder passear com sua filha pela floresta. Conversei com ela esses dias mas ela só quer ajudar a mãe a cuidar do bando.”



Sad, seu pai, percebeu que a filha do meio do bando estava querendo cuidar de todos. Esquecendo-se de seguir a jornada de todos os leões, de acasalar, procriar e acompanhar sua ninhada até o fim dos tempos. Não permitiria que ela se sacrificasse, ainda mais sabendo que sua mãe ora era leoa ora era rouxinol. “Apareça amanhã no fogo da noite. Verei se você merece estar com Luna andando por essas ou outras bandas”, respondeu secamente Sad a Sky.


E assim passaram os dias, que viraram meses e depois anos. Sky de fato conseguiu seu intento. Aproximou-se aos poucos, como fazem os animais pequenos como pássaros, em sua flor africana. Ela era meio fechada essa flor. Mas aos poucos foi desabrochando como a mais bela das flores existentes na África.

Um belo dia já casados de pouco tempo, surge a oportunidade de Sky ir pra outro território, aprender novas caças e novos truques e artimanhas que a vida numa selva requer de cada felino. Luna acompanha Sky e lá, já longe dos pais e irmãos, ela tem dois leõeszinhos fofos e felpudos. Sun e Star. Eles eram uma farra só pelos campos. Se embrenhavam atrás de pequenos bichos e um subia e mordia o que seria, no futuro, os pelinhos das futuras jubas um do outro. Não se desgrudavam e por oras brigavam um com o outro. A mãe e o pai, agora jovens, apartavam os conflitos e lhes ensinavam os perigos da noite em meio à floresta. Como havia muito o que eles ainda teriam que aprender! Mas o mundo era deles, de suas brincadeiras e peripécias.




O casal se completava. Um cuidava do bando o outro cuidava do bando...e em noites de lua...que Luna adorava, eles se encontravam mais para além de suas jubas. Eles se entendiam. Mesmo nos dias em que rugidos de um ou do outro pareciam ecoar e ganhar força...mas também havia lambidas e cuidados. Eles se acalmavam. Os pais de Luna foram envelhecendo, assim como os pais de Sky, na Índia. Era difícil para ele saber que não poderia estar muito perto deles, por ter sido levado quando pequeno para longe...para África. Mas ambos percebiam os ciclos dos dias, com nascer e pôr do sol, os dias de chuva e de frio, e de vento. E esse mesmo tempo manifestado na natureza estava dentro deles, no bando que construíram...nos pais que estavam com as jubas mudando de cor. Ser leão ou leoa não era fácil. Mas juntos tudo parecia mais bonito. Cada dia, cada presa caçada, cada refeição saboreada juntos, cada entardecer pela relva. E assim foram...sendo inteiros por onde iam...


 
 
 

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