
Os budistas falam muito de impermanência...assim como os taoistas falam muito de tao, caminho, fluxo. Nenhum dia sequer consegue ser idêntico ao anterior. Assim são as fases de nossas vidas. A infância, pré-adolescência, adolescência, fase adulta, terceira idade...por aí vai. Tem sempre um nome para o inominável...que é saber soltar. Soltar o dia de ontem, soltar a fase anterior de sua vida, soltar aquele acontecimento (seja ele alegre ou triste)...soltar.
Como mãe, ainda há o desafio de soltar o filho pro mundo...o passarinho protegido no ninho, pros primeirinhos vôos por perto da árvore. Parece que me lembro de mim pequenina, indo pro ponto de ônibus sozinha...lembro bem a idade: 7 anos. Os tempos eram um pouco diferentes, início dos anos 80. Meus pais com certeza permitiram pequenos vôos porque eu estava pronta e o mundo à minha volta era beeem mais simples.
Hoje como mãe, em plena pandemia, passados 1 ano e meio em home-office, e apegada a estes inúmeros papéis maternos de um lanche preparado com amor, ou de uma ida à natação juntos caminhando, viro o meu ser pelo avesso e exercito o soltar. Tenho preparado meu filho mais velho - de apenas 11 tenros anos - para que ele possa daqui um tempo ir pra natação sozinho, caminhando.
Esse preparo, exige que conversemos abertamente sobre este mundo lá fora, sobre as pessoas, sobre malícia, sobre o mal. Quebro a inocência dele ao falar abertamente sobre os perigos de um percurso, sobre possíveis abordagens, sobre ofertas de carona, ofertas de lanches, convites para entrar seja lá onde for...rasgo-me inteira por dentro ao dizer pra ele...que o mundo não tem a pureza que existe na alma dele. Preparo-o...converso, explico...coragem e medo lado a lado...como velhos amigos aposentados dividindo o mesmo banco de praça jogando xadrez.
Uma parte de mim gostaria de ser a famosa Amélia...a que era mulher de verdade sabe...a do jargão da música? A que fica em casa...só pra eles...e por eles. Mas o lar que me forjou não me permitiu outra coisa a não ser estudar, conhecer, desvendar...se proteger...mas seguir e amar.
O primeiro rebento...desde quando mexe no ventre...mexe demais com a gente por inteiro. Não que o segundo e terceiros e quintos...não mexam também. Mas é que ele...o primeiro filho, é como aquele trator em plena Amazônia, que sai com suas correntonas rasgando aquele clarão. E não quero aqui dizer no tom negativo comparando o primeiro filho ao desmatamento...mas é que ele abre o clarão de um trecho todo dentro da gente...da certeza de que não sabemos de nada...a não ser amar...incondicionalmente...sem mais dali pra trás...somente dali pra frente...como a clareira que fica na mata para, mesmo que plantem árvores,...nunca mais o lugar ser como foi antes...nunca...
E quando essa pessoinha que mamava, engatinhava, andava e corria, pedalava, andava de patinete, sempre com olhares a olhar por ela...quando ela tem que andar com os pés, sem qualquer supervisão, a gente se pega no arcanjo, a gente se pega nela...a Maria, a gente se pega no DEUS onipresente (AQUELE que está em todos os lugares) e no TAO que permeia tudo. A gente pede que o pedacinho de chão que ele tiver que percorrer, que seja de luz, sagrado, protegido...e que a minha coragem de mãe seja sempre maior que meu medo de mãe.
Tenho preparado o terreno...semeado as sementes da autonomia...e falado...'cuidado com isso, esteja atento àquilo'...enfim...e sei que o dia tá chegando. Mas ele é meigo e sai dando bom dia boa tarde e boa noite pra Deus e o mundo...explico que até ser afável requer moderação...com completos estranhos devemos ser sempre cautelosos. Provavelmente devo sucumbir a um celular pra ele, que tanto adio...para me comunicar com ele. Ah, se eu pudesse...como num poema...deixava ele no ninho...esse meu passarinho...

Mas ele precisa e QUER voar...tanto que já me afirmou mais de uma vez: 'mãe, fica tranquila...eu sei ir e voltar...não precisa ter medo...' e me pega pensativa e diz: 'mãe, vc está bem?' Não...eu não estou bem...estou processando e digerindo e ruminando...os passinhos que ele vai dar...
Nessas e em todas as horas a fé é algo estruturante...pq eu sei que vai dar tudo certo...EU TENHO FÉ. Mas o que tenho é dialogado com o meu medo e falado pra ele 'cara...assim não dá...eu preciso de um tempo...' como o casal de namoradinhos que brigam (medo e coragem).
A vida é um constante fluxo...o yin e yang estão aí pra nos mostrar...o tempo todo tudo mudando...no meio dia o ápice do dia e início da noite...na meia noite o ápice da noite e início do dia...o nascer e o morrer...o chorar e o sorrir...um dia de chuva e outro de sol...nada para de cambiar...assim como cambeiam nossas pernas frente ao próximo desafio. Um dia grávidos, um dia bebê, um dia menino...no outro rapazinho...
Só sei que escrever me solta...e, já um pouco solta, penso em soltar...soltar a mãe-posse, soltar o controle (ou pseudo controle), soltar o medo, soltar meu pré-adolescente pra natação só...soltar é um exercício difícil...porque naturalmente queremos segurar...agarrar, abraçar, beijar, morder, fazer cócegas, comer pipoca junto e ver filmes agarradinhos.
Filho é como que um aroma...o melhor dos aromas...um aroma do céu! Mas não dá pra trancar esse aroma no quarto a 7 chaves para somente vc sentir o perfume divino. Ele tem que rodar o mundo...e deixar outros igualmente felizes em senti-lo.
E aí...tudo aquilo que vc lê, pratica no tapete, todos os chi kungs da vida, yoga, tai chi, meditação...nessa hora tem que pegar tudo isso e se agarrar a isso e buscar o seu centro...acreditar na cadência da vida...como na natação que ele frequenta...primeiro uma braçada...depois outra...coordenadas com as pernas...respiração...e assim chega-se do outro lado da piscina...avançando uma aula de cada vez...aprendendo a ser mãe um dia de cada vez...a viver uma experiência por vez.
Ele é meu primeiro pedacinho de céu...ele é meu bebê crescendo...ele é meu rapazinho.
E como um ruminante estou processando, digerindo, preparando o terreno...falando e explicando...o dia tá chegando desse soltar...tenho orado e pedido aos mestres divinos a humildade da água...que a tudo contorna...pedindo luz interna...pedindo centro...pedindo (e praticando) tai chi. Soltando...me busco ser uma pessoa melhor.
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