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Meá

Foto do escritor: Sandra TavaresSandra Tavares

Atualizado: 18 de abr. de 2022


Estar com meu pai e meus irmãos de uns tempos pra cá tem sido cada vez mais inesquecível, de tão importante! Ontem - Sábado de Aleluia - almoçamos e recordamos depois de 135 dias de sua passagem para o plano espiritual tantas memórias lindas de minha mãe, sua trajetória de vida e seu legado...do que fica e se eterniza. O AMOR.

Ontem em nossos bate-papos soubemos por nossa irmã que ela conheceu o mar ainda jovem, quando trabalhava nas Casas Pernambucanas em Picos-PI, e que foi selecionada para ir a Fortaleza-CE para um treinamento de uso das máquinas de costura Vigorelli. Papai complementou que ela já namorava com ele...e que por vezes presenciou na loja ela dando instruções às pessoas interessadas em comprar uma máquina de costura nova. Naquela época as máquinas de costura eram uma tecnologia só. Taí...não sabia que ela conheceu o mar novinha!



Pouco antes de almoçarmos juntos, havia buscado papai e Joana na casa deles...e resgatei imagens preciosas dela. Uma boneca de tão linda! Uma soldadinha a serviço do amor!

Em tempos de páscoa...de passagem...tenho revelações a fazer. Eu perdi a minha primeira pessoa. E esta primeira pessoa foi exatamente a pessoa que eu mais temia perder. A minha mãe. Sempre que eu conversava com pessoas que já tinham perdido alguém eu tentava ao meu modo compreender aquela dor, numa espécie de solidariedade com aquilo que o outro sentia. Mas de fato, ninguém faz ideia do que seja perder alguém que se ama, até que aconteça com você.


Viver a passagem da minha mãe tem sido um processo de luz e de sombra, mas muito importante de ser vivido. Consigo hoje ver que não há como compreendermos a vida sem ‘darmos a mão’ para a morte. E não há que se falar de uma em oposição à outra. Pois não se trata também de querer que todos vivam eternamente. Mas de entender o ciclo, que não é da vida versus a morte, mas de vida morte vida morte vida morte vida morte...nesse eterno fluir.

O texto se chama Meá porque minha mãe tinha esse apelido de pequena. Quem o deu foi o único irmão que ela tinha, meu tio Paulo. O apelido remete ao nome dela. Maria Ismelda. E como ele pequeno não conseguia pronunciar o nome, a chamava do modo dele de Meá. O nome dela tem uma história muito bonita. Minha avó havia dado a ela o nome de uma freira criança chamada Imelda Lambertini (Itália-Bolonha-1322).

Esta menina de apenas 9 anos era atraída para o convento das irmãs dominicanas em busca de "Nosso Senhor”, com grande devoção pela oração e extraordinário discernimento pelas coisas do Altíssimo. Já como freira, com 11 anos, algo extraordinário aconteceu enquanto Imelda estava em adoração ao Santíssimo: uma Hóstia flutuou diante da criança emitindo uma luz que ia direto para ela. Era chegada a hora de sua primeira eucaristia.

Ela sempre dizia quando estava na presença das irmãs: "Como é que as pessoas não morrem de alegria quando recebem Nosso Senhor na Eucaristia?". Ao receber o corpo de Cristo, fez sua passagem. Foi proclamada beata em 1826 sob o pontificado do Papa Leão XII e Patrona das Primeiras Comunhões em 1910 pelo Papa São Pio X. Sua memória litúrgica é celebrada no dia 12 de maio​ e Imelda é a patrona das crianças que se preparam para receber a Primeira Comunhão.

O nome de minha mãe era pra ter sido registrado Imelda...mas foi registrado Ismelda. Mas a síntese do significado de seu nome atravessa a história, e me faz ver que ela possuía tanto o sorriso da criança, a alegria genuína diante das coisas simples da vida e dos momentos mais singelos do dia a dia, quanto sua conexão com o Altíssimo.


Muito interessante pesquisar seu nome depois de sua passagem e perceber que a beata Imelda, tinha muito da minha mãe, por vezes também chamada de beata por meu pai, pela sua caminhada pautada na fé incondicional em Deus. Ela não titubeava, nem duvidava. Estava com Ele e ponto.

Dentro de meu processo terapêutico, que caminha desde 2008, foi me dado em determinado momento um ‘dever de casa’. Que eu perguntasse a minha mãe quais eram os seus sonhos, músicas, aromas, receitas, sobre sua mãe e amigas. Um belo dia simples liguei para ela e disse que tinha essa tarefa a fazer e fui fazendo as perguntas pra ela e ela foi me respondendo de forma tão gostosa e interessante que fiquei embasbacada.

O sonho de minha mãe era de ser professora. Porque o quiosque onde minha avó materna vendia quitutes ficava de frente para uma escola e sempre que ela via as professoras saindo da escola ela pensava que queria ser como elas. As músicas que mais marcaram a memória dela foram as da jovem guarda com Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Vanusa e Wanderléia.

Sua receita da memória se chama bolo frito. Basta pegar um pacote de polvilho azedo, ferver 1 xícara de leite com um pouco de óleo e sal, jogar a fervura sobre o polvilho e quando for esfriando jogar um ovo e amassar bem e a massa deve desgrudar dos dedos e vc faz cobrinhas e junta as pontas, frita no óleo e toma com café fresco. Eu cresci comendo essa gostosura. Ela citou ainda a rosca, outra receita salgada, arroz com feijão verde, Maria Isabel (arroz com carne de sol picadinha feito junto), coalhada, suco de umbu e cajá, doce de buriti, de cajá e de leite em calda. Ela fazia um doce de banana da terra com cravo na panela de pressão inesquecíveis.

Os aromas mamãe me citou alguns que marcaram sua época, como perfume Acapulco, a colônia Contoré, Toque de Amor da Avon, o inesquecível Leite de Rosas, Alma de Flores, Alfazema, e os sabonetes Febo e Charisma.

Sobre a minha avó materna, mãe de minha mãe, ela falou que era uma mulher que acordava muito cedo para fazer bolos, e cozinhava muita coisa. Recebia o leite do leiteiro. Ela se lembra de acordar e estar aquele perfume dos bolos pela casa. Ela ia pra escola e a sua mãe, minha avó, contratava as vezes outra mulher que fazia outros tipos de bolo que ela não fazia, pois a mulher possuía forno a lenha/de tijolos de barro.

Minha mãe comenta que a sua mãe ‘era um general’, tinha uma autoridade. O seu único irmão, meu tio Paulo, estudava em colégio interno em Teresina-PI. Ela começou a namorar meu pai com 16 a 17 anos e já com 19 anos estava casada. Um ano depois ganhou seu primeiro filho, meu irmão mais velho Johelder.

Segundo seus relatos na entrevista, o momento mais barra de sua vida foi ela com 3 filhos pequenos em outra cidade (Araxá-MG) sem contato com sua mãe. Ela relatou que escrevia cartas para minha avó, que respondia, mandando junto encomendas como polvilho, doce de buriti.

Já de volta a terra natal, 1986-87, ela se lembra da dificuldade em se adaptar ao calor de Picos, de rever sua mãe já mais velha. Quando perguntei se ela tinha memória dos avós dela por parte de mãe ou pai, ela disse que sua mãe não tinha pais, e que havia sido criada por tios.

Do mundo das amizades ela citou alguns nomes que anotei bem atentamente: Fátima Barão, Julieta criada por Joana Correta, Bel e Mecê suas primas, pois a mãe delas era prima legítima de sua mãe. E juntas elas brincavam de boneca, ainda sem luz pois a luz que era a motor desligava; brincavam de ‘passar o anel’, pique pega; esconde-esconde. Mas teve momentos em que vovó a proibiu de brincar também...e ela sentadinha na calçada ficava olhando todos brincarem porque ela estava limpa e arrumadinha e não poda se sujar. Quando já casada em Araxá-MG não conseguiu cultivar tantas amizades.

Eu cresci vendo minha mãe chorar. E quando perguntei pelos choros ela me falou que sentia muitas mas muitas saudades de sua mãe e de seu irmão. Ela lamentou o fato de vovó ter deixado ela apenas estudar e de não ter preparado ela para a vida de casada, o que ela sentiu e sofreu. Ela concluiu com a seguinte frase a entrevista: ‘Minha mãe não me deixava ficar na cozinha, queria que eu estudasse. Minha tarefa era só estudar, tanto que o meu foco era esse: estudar’. E completa: ‘Eu sofri aprendendo (no caso a lidar com uma casa, afazeres domésticos, etc). E a frase que eu ouvi, repeti’.

Fiquei, depois dessa entrevista, meditando sobre a frase que ela repetiu de sua mãe. E eu e minha irmã a ouvimos muitas vezes. “Estude pois somente os estudos vão levar você a algum lugar”...não exatamente com essas palavras mas em síntese era isso. Ela também não nos queria na cozinha, mas ao mesmo tempo nos ensinava o básico para sobrevivermos. Tanto que eu e minha irmã cozinhamos e nunca foi um sofrimento gerenciar um lar. Ou seja, ela conseguiu dar aquilo que sua mãe deu a ela (os estudos) e ainda conseguiu fazer com as filhas o que sua mãe não conseguiu com ela (que foi nos preparar minimamente para administrar um lar).

Eu cresci com minha mãe assistindo Malu Mulher, e ouvindo Clara Nunes, Elis Regina. Minha mãe era uma mulher muito linda, ela era uma morena que atraia as atenções. Sempre foi guerreira, e tem histórias clássicas que ela sempre nos contava e repetia inúmeras vezes.

Como a história e que meu irmão pequeno gostava de pular a janela de casa para ir brincar na rua...ou mesmo de andar sem cueca ela casa. Minha mãe, para ele se aquietar dentro de casa, falava que o carro da polícia iria passar e levar os meninos que ficassem na rua. Nisso ele sossegava dentro de casa.


Ela sempre contava que eu falava como um papagaio. E que por vezes falava alto. Ela tinha um lance com falar baixo que era muito interessante. Ela não gostava de grito, de tom alto de voz e nem que os vizinhos soubessem de nossa intimidade familiar. E certo dia não tinha carne e ela falou baixinho: ‘Hj não temos carne’. O que eu respondi aos berros: ‘Pois tem farinha mãe? Põe farinha no meu prato?’. E ela: ‘Fale baixo menina’.

Ela comenta que minha irmã caçula Joana não era fã de carne/proteína e era magrinha. Ela pelejava pra Joana pelo menos chupar o caldo da carne pois queria que ela crescesse e se desenvolvesse bem. Ou seja, ela nos via e nos cuidava por completo. Vendo cada um na sua inteireza, com suas características.

Mas para minha mãe ter vivido longe de sua mãe e se suas raízes ancestrais, foi muito difícil. Sem novas conexões como amigas. Tanto que a saúde mental dela, e de qualquer outro ser humano em seu lugar, ficou comprometida. Ela tinha crises e momentos que eu denomino ‘off line’, em que ela se fechava para nós mas estava conectada com outras experiências. Ela dialogava, contava, sorria, dançava por horas, e sempre dizia a mesmíssima coisa nesses auges: ‘Eu ainda vou ser famosa, vou gravar um CD e vces vão ver, ninguém vai me segurar’.

A garotinha pequena que ouvia isso achava aquela mulher meio maluca. A mulher de agora a admira ainda mais. Eram três crianças, um esposo, numa cidade distante das suas raízes no Nordeste e sem o contato com as pessoas que ela amava como a mãe e o irmão. Quando vejo o que minha mãe fez com os recursos que ela dispunha na época. Não tem como não a admirar por toda a minha vida. Por toda a eternidade de meu espírito.

Mas minha mãe adorava Clara Nunes. Ouvia suas músicas, sambas, com letras bem fortes, profundas e marcantes e nas crises cantava essas letras: “O mar serenou quando ela pisou...na areia / Quem samba na beira do mar...é sereia” entre tantas outras. Ela ainda falava frases que quando busco para compreender são muito simbólicas: “Sou a Samata Guerreira. Filha de Ogum com Iansã”.

Analisando apenas essa pequenina frase que cresci ouvindo, ela tem bastante informação. Samata tem origem no aramaico e significa ‘aquela que ouve’. Segundo a mitologia, na juventude Iansã viajou por muitos reinos e foi a paixão de muitos reis, com o objetivo de aprender o máximo que pudesse sobre todos os reinos e conhecer melhor o universo. Com Ogum, ela aprendeu a manusear a espada e ganhou o direito de usá-la.

Ou seja, minha mãe tinha a habilidade de ouvir e tinha a potência de uma guerreira, com o uso da espada na vida, que seccionasse o que fosse preciso para ela ser o que era. Na pseudo insanidade havia tanto...tanta sanidade e grandeza! Sua mediunidade poderia ter sido melhor trabalhada, de modo a gerar menos sofrimento ao corpo e mente dela. Mas sua trajetória foi de muita superação, de muita abnegação, de muito AMOR.

Em meu processo de luto tenho chorado a noitinha, quando o dia termina e minha mente se recorda que não foi um pesadelo, o que eu vivi. De fato a minha ‘ficha cai’ de que eu perdi mesmo a minha primeira pessoa, justamente aquela que meu coração tanto temia perder. Quando ela ainda estava viva e sequer imaginava isso...bastava eu pensar na ideia de perde-la, dela morrendo e meus olhos se enchiam de lágrima. A simples ideia. A simples suposição. Hoje isso é uma realidade. Real. Tão real quanto as teclas que digito nesse momento. Ela se foi. Não posso abraça-la mais. Sentir o cheiro dela. Ouvir sua voz. E isso tudo dói tanto. Dói demais.

Mas como se diz no Nordeste ‘me fio’ no que ela quereria de mim...a partir de sua partida. Tento materializa-la na minha frente me dizendo: ‘Quando eu morrer não quero ninguém chorando’. Ou se ela me visse em meus momentos de tristeza, ela diria ‘Pode parar com isso! Pelo amor de Deus. Não vá ficar ai no baixo astral e largar meus netos...pode fazer o favor de levantar esse astral...bola pra frente garota...eu hein...espero que vc esteja cuidando dos meninos direitinho e cuidando do seu esposo...’ e por aí vai...ela me daria aquele sermão...dos bons!

Tenho plena convicção de que ela levou com ela qualquer ranço ou diferença que existia entre nós...não ficou nada. Eu, meus irmãos e nosso pai temos nos mantido unidos, fortalecidos na fé, dando apoio e suporte uns aos outros, aprendendo a agradecer por cada dia que amanhece, pois não sabemos do dia de amanhã. Não sabemos de nada na verdade. A única coisa que é certa, é o amor que damos e o amor que recebemos. Este levamos conosco, por onde quer que estejamos. Não é a toa que o Cristo sublime nos disse e deixou esse legado: ‘Amai-vos uns aos outros’.

Sigamos, então, alimentados neste amor!

Ps.: Cheguei a ouvir áudios dela que minha irmã me enviava via Whastapp. Um deles por mais que sinta saudades dela, não me entristece, mas me ergue. Ela me dizia em síntese: ‘Filha, vc já agradeceu hj? Vamos agradecer pelo dia que amanheceu? Por esses filhos maravilhosos? Por este esposo que Deus lhe deu...’ e ela ia listando numa narrativa inesquecível. Como temos que ser mais gratos meu Deus! Como temos que agradecer!

Obrigada obrigada e obrigada meu Deus por tudo!


Por todo aprendizado!


Por toda luz que sempre ilumina o caminho! Obrigada!



 
 
 

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